quinta-feira, 2 de abril de 2009

Alzheimer - A família é peça fundamental

Artigo da autoria das Enfermeiras Dalila Freitas e Rita Mendonça, voluntárias da Associação Alzheimer Portugal - Delegação na Região Autónoma da Madeira, publicado em 29 de Setembro de 2007 no Jornal da Madeira, secção Opinião.

Apesar de todas as dificuldades existentes, a família continua a ser a peça principal da rede de cuidados. E ainda bem que assim é, pois é no seio da família, na sua casa, que o doente deve permanecer. Se os laços se mantiverem, se a afectividade e o carinho estiverem presentes, a doença não se cura mas o doente sente-se mais protegido do mundo que o rodeia, o qual lhe é progressivamente mais estranho e 'agressivo'.Os afectos são importantes na nossa vida e na do Doente de Alzheimer eles são preciosos.

Segundo a Classificação internacional das Doenças (CID), a Doença de Alzheimer integra o grupo das demências tratando-se, concretamente, de uma doença neurodegenerativa em que as alterações e destruição do tecido nervoso é gradual e progressiva, iniciando-se a partior de um determinado momento da vida adulta.

Gil e Mendes referem que a Doença de Alzheimer afeta 8% a 15% da população com mais de 65 anos, sendo certo que no mundo existem actualmente 17% a 25% da população com a doença, o que representa 70% do conjunto das doenças que afetam a população geriátrica.Em Portugal estima-se em 60 a 70 mil o numero de doentes, segundo projecções efectuadas em 1999, aplicando os coeficientes de prevalência da Doença de Alzheimer à população portuguesa, com base nos censos de 1991. Em 2050 estima-se que este número seja cinco vezes superior.

Actualmente e apesar dos avanços científicos verificados nesta área, não existem provas conclusivas que sugiram que haja um grupo especial de pessoas com maior ou menor aptidão para desenvolver a doença. Nem a raça, nem a profissão, nem a situação económica são determinantes. Como refere Katzman, "a doença de Alzheimer é um processo democrático, vitimando quer o indivíduo comum, quer o doutorado e mesmo laureados Nobel (George Beadle, pioneiro de genética bioquímica), ou presidentes (Ronald Reagan), embora existam claros indicadores de risco associados à escolaridade e à ocupação profissional".

O início da doença geralmente ocorre depois dos 65 anos de idade, embora não seja raro que esta se manifeste mais cedo.No entanto, não a podemos considerar como consequência inevitável do envelhecimento, embora a sua incidência aumente consideravelmente com o avançar da idade.Também não existem estudos que confirmem a relação da hereditariedade com a doença.Em certo número de casos ela tem uma natureza familiar, enquanto que em outros apenas uma pessoa da família é afetada.

Torna-se, assim, difícil marcar o início da doença e é frequente cada familiar referir uma data diferente como sendo a de início, pois cada um se deu conta do problema numa situação própria, às vezes a anos de distância. O próprio doente, numa primeira abordagem, muitas vezes não se mostra muito preocupado com o que se passa. na realidade, vai perdendo progressivamente capacidade de introspecção e crítica, nega ou minimiza as suas incapacidades, recorrendo a outras justificações para o seu comportamento.

A sua evolução é de 2 a 10 anos, em que a sintomatologia implica uma deterioração gradual, lenta e irrecuperável da capacidade de funcionamento da pessoa. Os danos cerebrais afetam o funcionamento mental nomeadamente a memória, a atenção, a concentração, a linguagem, o pensamento, tudo isto com óbvias repercussões no comportamento. Citemos uma frase em tempos proferida por Auguste D., vítima de Doença de Alzheimer, que dizia: "perdi-me de mim mesma". A frase é curta mas bastante elucidativa do que essa paciente sentia em relação a si própria, provavelmente proferida num momento de lucidez, no decurso da sua doença. Na verdade, o Doente de Alzheimer vai progressivamente se distanciando de si próprio, dos seus familiares, dos seus amigos, do mundo que o rodeia.E à medida que essa distência aumenta, é sinal de que 'as luzes' do seu cérebro se vão tornando cada vez mais ténues, até se apagarem, umas a seguir às outras.

Ao longo deste processo o doente sofre muito porque, inicialmente, tem plena consciência de que algo de estranho se está a passar consigo, dado que não funciona da mesma maneira que funcionava antes. Os esquecimentos, as falhas de memória, o 'fazer coisas erradas', são situações que passam de ocasionais a frequentes. Tudo se vai complicando. E, por mais estranho que pareça, aos olhos do doente os outros não o compreendem. Frequentemente a família zanga-se com as 'patetices' que o doente faz; os comportamentos chegam a ser bizarros e não há familiar, por mais compreensivo que seja, que consiga manter a calma e reagir de forma sempre adequada.

Por vezes os papeis na família têm de ser reestruturados e frequentemente aquele que cuidava e orientava passa a ser cuidado e dependente dos outros. Estas alterações também não são fáceis de gerir no seio da família. E se abordávamos há pouco o sofrimento do doente, não podemos deixar de referir a sobrecarga física e psicológica da família, que está directamente relacionada com a necessidade que o doente tem em ter junto de si, permanentemente, um cuidador.

Apesar de todas as dificuldades existentes, a família continua a ser a peça principal da rede de cuidados.
E ainda bem que assim é, pois é no seio da família, na sua casa, que o doente deve permanecer. Se os laços se mantiverem, se a afectividade e o carinho estiverem presentes, a doença não se cura mas o doente sente-se mais protegido do mundo que o rodeia, o qual lhe é progressivamente mais estranho e 'agressivo'.Os afectos são importantes na nossa vida e na do Doente de Alzheimer eles são preciosos.As respostas do doente às manifestações de carinho são as que estão mais presentes, mesmo na fase mais avançada da doença, fazendo mesmo parte do 'tratamento'. Por isso não deixe de o abraçar, beijar, tocar-lhe a face,memo que pense que não terá nenhuma reacção.

Mas, nesta 'simples viagem' pela Doença de Alzheimer, chegámos a uma fase em que "quase todas as luzes serão apagadas" e o doente está tão ausente, totalmente dependente dos outros. Esta é também uma fase que requer muito esforço do cuidador, que deixa muitas vezes de pensar em si, de ter tempo para si, de sair, de conviver, o que não é difícil entrar em ruptura.

Se actualmente se considera que são apenas as patologias em si que determinam os cuidados de saúde, mas sim outras variáveis de índole social e económica, na pessoa com Doença de Alzheimer isto é tanto mais premente. De facto, a abordagem desta doença deve ser sempre feita atendendo ao doente e seu cuidador/família. Como refere Melo (2005), "não há doença crónica que requeira tanto ajuste familiar como a demência". Esta realidade requer, por isso, uma resposta global, integradora, coordenada e continuada, para a qual é necessário identificar novas formas de intervenção, organizando da melhor maneira os recursos existentes. Toda a intervenção deve ser direccionada no sentido da manutenção do doente no seu domicílio, pelo maior período de tempo possível, ao cuidado da sua família. Mas certos factores concorrem para que esta seja, na maioria dos casos, uma situação complexa. referimo-nos, por exemplo, ao elevado nível de dependência que este doente atinge, as dificuldades de suporte pela própria família, as condições dos complexos habitacionais, as necessidades de ordem financeira, entre outros factores.

Assim, o projecto de manter o doente no domicílio é necessariamente pluridisciplinar, havendo a necessidade de articular os saberes dos diferentes grupos profissionais. A perspectiva de intervenção deverá ser holística, onde os objectivos primordiais são manter o doente o mais independente possível, minimizando as perturbações do comportamento; manter a máxima qualidade de vida; melhorar a auto-estima e integridade pessoal; diminuir o sofrimento e apoiar e optimizar o papel da família e de outros cuidadores nos cuidados ao doente.

Neste sentido, e atendendo ás características das sociedades actuais (populações envelhecidas, predominância das doenças crónicas e incapacitantes, entre outras), tornando-se evidente que o número de famílias cuidadoras aumentará, colocando-se, assim. um desafio para as políticas de saúde, no que concerne a estes prestadores de cuidados. A identificação das necessidades em saúde dos utentes e suas famílias, a consideração dessas necessidades num plano mais individualizado e o fortalecimento da articulação entre os vários serviços, conduzirá certamente a um plano de intervenção adequado, cujos resultados revertem a favor dos doentes e das famílias. E, mais concretamente na situação de demência, nenhuma intervenção farmacológica ou não farmacológica resultará em benefício para o doente se o cuidador não for plenamente apoiado e integrado na equipa de cuidados.

Por fim, diríamos que cuidados de saúde e cuidados sociais deverão ser as 'duas faces da mesma moeda' e que o contributo de todos não será certamente demasiado: governo, entidades locais (autarquias, juntas de freguesia, paróquias, entre outras), associações, voluntários e cidadãos em geral.


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